"Diálogos com Paulo Freire": 2011/1º!

Neste primeiro semestre de 2011 o blog disponibilizará os instrumentos de pesquisa (mapas/sínteses conceituais, perguntas, glossários, bibliografias), textos, etc. produzidos durante a disciplina optativa "Diálogos com Paulo Freire".
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terça-feira, 12 de abril de 2011

Momentos do itinerário freireano


Rodrigo Marcos de Jesus[i]
 
            Neste tópico destacaremos três momentos que consideramos marcantes do itinerário freireano. Eles expressam mudanças não só de contexto, histórico e pessoal, mas também de determinadas preocupações e ênfases do autor. Preferimos denominar tais mudanças de “momentos” e não “fases”, pois mesmo ocorrendo alterações e inovações na forma de Freire elaborar sua visão de mundo e sua filosofia política da educação há algumas orientações teóricas e práticas que se mantêm. O quadro sinótico abaixo destaca as principais características de cada momento.

Educação como Prática da Liberdade (1965)
Pedagogia do Oprimido (1968)
Pedagogia da Autonomia (1996) / Pedagogia da Indignação (1997)
Sociedade Fechada
Educação domesticadora
(massificação)
x
Sociedade Aberta
Educação para liberdade
(povo)
Opressores
Educação bancária
(dominação)
x
Oprimidos
Educação problematizadora
(libertação)
Neoliberalismo
Educação tecnicista
(ética do mercado)
x
Progressistas
Educação crítico-formativa
(ética universal do ser humano)
Sociedade em transição (democratização)
Luta contra as opressões
(humanização)
Outro mundo possível
(humanização, Terra)
Conscientização para o desenvolvimento nacional
Conscientização para libertação
Educar para o sonho e a utopia
Obstáculos:
Autoritarismo e inexperiência democrática
Obstáculos:
Sectarismos (direita e esquerda) e medo da liberdade
Obstáculos:
Fatalismo e indiferentismo
Pedagogia da Comunicação
Pedagogia do Oprimido
Pedagogia da Autonomia e Indignação
Ênfase: indivíduo
Ênfase: classe social
Ênfase: múltiplas opressões
           
O primeiro momento do itinerário de Freire é marcado pela sua atuação como educador de adultos no Brasil nos anos 1950 até o desfecho trágico do golpe civil-militar de 1964. Neste período o país vivia intensas mudanças provocadas pela industrialização e urbanização. No plano político surgem as lideranças populistas e ocorre a emersão de diversos movimentos sociais, como as Ligas Camponesas, o movimento estudantil (a UNE será uma entidade dinâmica e influente), os movimentos de trabalhadores sindicalizados. Há também uma grande efervescência cultural no teatro, no cinema e na música.
            O Brasil passava por profundas transformações tanto em sua estrutura econômica quanto em sua estruturação política e cultural. Freire, num diálogo muito próximo e assumindo em linhas gerais a interpretação que o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) fazia do país, entende que a sociedade brasileira transitava de uma sociedade fechada, alienada econômica e culturalmente, que apresentava como dois grandes obstáculos o autoritarismo e a inexperiência democrática e na qual o povo era um mero objeto manipulado pelas elites, para uma sociedade aberta, autônoma, desenvolvida, que se democratizava e na qual o povo se transformava em sujeito de sua própria história.
            A sociedade em transição passava, então, por um período conflituoso entre um tempo que se esvaziava e um novo que começava a surgir, vivia a tensão entre uma sociedade-objeto e uma sociedade-sujeito. A “democratização fundamental” ensaiada pelo Brasil só se concretizaria, segundo Freire, se juntamente com as transformações econômicas houvesse um trabalho educativo que auxiliasse a formação de uma cultura democrática. Isso resultaria na transformação da massa popular emergente em povo, isto é, sujeito coletivo capaz de optar e decidir autonomamente os rumos da sociedade. A democratização da sociedade e o desenvolvimento nacional, portanto, não seriam obtidos apenas pelo dinamismo econômico.
Naquele período da história brasileira as forças em luta se explicitavam. Era um momento de crise e de alterações tão profundas que colocava de maneira dramática a possibilidade do novo e também de um retorno regressivo ao irracionalismo autoritário, que historicamente terminou por prevalecer.
            O correlato, no plano educacional, do embate político-social entre uma sociedade fechada e uma sociedade aberta era a opção por uma educação domesticadora ou uma educação para a liberdade. A primeira favorecia a massificação e manutenção da sociedade-objeto. A segunda seria um instrumental fundamental à formação do povo e da sociedade-sujeito. Mas essa educação voltada à conscientização para o desenvolvimento nacional, para a constituição de uma sociedade democrática, não poderia ser realizada utilizando-se da pedagogia fomentadora da sociedade autoritária. Daí ser necessária uma pedagogia da comunicação, que permitisse aos indivíduos, principalmente às camadas populares, participarem de modo ativo, enquanto sujeitos, tanto do próprio processo educativo quanto dos processos políticos. 
            Os dois primeiros livros de Freire, Educação e Atualidade Brasileira[ii] e Educação como Prática da Liberdade, retratam o momento inicial do pensamento freireano.
            O segundo momento marca um aprofundamento de temas anteriores e a incorporação de novas preocupações. Freire, que se viu obrigado a sair do Brasil, amplia sua reflexão. Parte agora de uma perspectiva que poderíamos dizer mais universal. A Pedagogia do Oprimido, escrita entre 1967-8 e publicada primeiramente em inglês em 1970, expõe os contornos e principais ideias desse momento.
            Paulo Freire coloca como questão iniludível a humanização. Considera que as manifestações verificadas em distintos locais do mundo – movimentos estudantis, lutas contra as ditaduras e os neocolonialismos, as diversas rebeliões e revoluções – explicitam a questão antropológica fundamental: o que e como estão sendo os homens. Ora postular a humanização como urgência desse tempo é constatar o seu contrário, a desumanização.
            A desumanização implica o reconhecimento da existência de relações de opressão. Freire, então, desenvolve toda uma discussão sobre a contradição entre opressores e oprimidos. Dois pontos devem ser observados nessa discussão. O primeiro com relação à utilização das próprias categorias. Ao trabalhar as noções de opressor e oprimido o filósofo brasileiro enfatiza a questão das classes sociais. Contudo, a ênfase não significa redução ou identificação dessas categorias à dimensão de classe, tal como no marxismo. Elas operam de modo mais amplo. Permitem compreender a dinâmica da opressão em seus níveis social e pessoal e demonstrar como, ao mesmo tempo e em diferentes esferas, um mesmo indivíduo pode ser oprimido (enquanto classe econômica) e opressor (por exemplo, nas relações de gênero)[iii]. O segundo ponto se refere às formas da desumanização. Freire considera que a desumanização afeta diferenciadamente opressores e oprimidos. Sua posição é radical (no sentido de ir à raiz): não há autêntica liberdade, e portanto realização do ser humano, na opressão. O opressor tem sua humanidade distorcida, porque liberdade para oprimir não é liberdade e sim um exercício sádico e necrófilo, significa transformar o outro em objeto de posse. O oprimido tem sua humanidade roubada porque impossibilitado do exercício da liberdade, de construir de maneira autônoma sua própria existência.
Desse modo, Freire afirma a necessidade da libertação tanto de opressores quanto de oprimidos. Libertação implica a quebra da estrutura opressora e a restauração da humanidade em ambos. É ação de conquista ou reconquista da liberdade. É humanização do mundo. E só pode ser concretizada pelos oprimidos, uma vez que o poder dos opressores visa manter a ordem opressora. 
A libertação de que fala o educador demanda ação política e ação cultural. Ou seja, se concretiza através da ruptura da estrutura econômico-sócio-política e da transformação pedagógico-cultural. Requer modificações objetivas e subjetivas, do mundo e das consciências. Paulo Freire identifica na sociedade opressora uma prática pedagógica que favorece a dominação: a educação bancária. Esta mantém a ingenuidade dos homens e visa seu ajustamento ao mundo da opressão. Uma sociedade em processo de libertação não pode estabelecer uma educação desse tipo nem utilizar-se de seus instrumentos, por isso o filósofo da educação procura elaborar uma nova pedagogia. Caracteriza-a como uma pedagogia do oprimido. Ela parte do mundo da opressão e da percepção que o oprimido tem da dominação para problematizar esse mundo e essa percepção, que se mostra na maioria das vezes ingênua. Postula-se, assim, uma educação problematizadora, que questione os homens em suas relações com o mundo. Essa educação tem sua base fundamental no diálogo entre educador e educandos (e no plano político, entre liderança e povo), busca a emersão das consciências e a inserção crítica na realidade a ser transformada. A educação como conscientização dirige-se à libertação.
Um dos obstáculos que, segundo Freire, dificultavam à época o processo libertador eram o sectarismos de direita, que tentava manter o status quo, e de esquerda que, desconfiando da capacidade de pensar do povo e ignorando a imprescindível ação pedagógica da luta revolucionária, acabava por contradizer-se. Outro grande obstáculo era o medo da liberdade, verificável nos opressores, que temiam perder a suposta “liberdade” com o fim do status quo dominante, e também nos oprimidos, que apresentavam receio em assumir a liberdade da criação de uma nova situação (não mais opressora) e de ao assumi-la sofrerem maiores repressões. 
Além da Pedagogia do Oprimido – obra maior desse segundo momento da trajetória freireana e, a nosso ver, uma das obras fundadora do pensamento de libertação na América Latina e no Brasil[iv] – podemos citar outros três textos relevantes: Extensão ou Comunicação? (1968); Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos (coletânea de textos redigidos entre 1968-74 e publicada em 1975) e Cartas à Guiné-Bissau (1977). A Pedagogia da Esperança (1992), que tem como subtítulo “reencontro com a Pedagogia do Oprimido”, é um texto expressivo dos dois últimos momentos do pensamento de Freire. Nele o autor, como afirma o subtítulo, retoma e discuti vários pontos da Pedagogia do Oprimido e sinaliza as mudanças pelas quais passou sua reflexão. Pode ser lido como uma espécie de “texto de transição”.    
O terceiro momento do itinerário de Freire repercute a nova configuração do mundo e da sociedade brasileira a partir dos anos 1990. Duas obras se destacam: Pedagogia da Autonomia (1996) e Pedagogia da Indignação (1997). Esta última inacabada e publicada postumamente no ano 2000.              
            Sem abandonar as formulações teóricas anteriores, ao contrário, aprofundando-as, Freire identifica no novo cenário do final do século XX dois grupos sociais com projetos políticos e pedagógicos antagônicos. De um lado, os neoliberais[v], de outro, os progressistas. Os primeiros afirmam o fim da história e o modelo neoliberal como única alternativa econômica e política, mesmo que esse modelo se revele extremamente injusto do ponto de vista social. Além disso, proclamam a morte das ideologias e o fim das utopias. Terminam por reforçar o status quo opressor e negador da liberdade dos oprimidos. No plano ético, defendem a ética do mercado, reforçadora dos individualismos, do “vale tudo” e da busca incessante pelo lucro. A educação que condiz com o neoliberalismo é uma educação tecnicista, que desconsidera a finalidade da educação e sua dimensão política intrínseca. Não leva em conta que toda educação opta, explícita ou implicitamente, a favor ou contra um determinado projeto de sociedade. Nesse sentido, para o neoliberalismo, a educação seria neutra e visaria basicamente a uma aprendizagem de técnicas e competências a serviço do mercado.
            Já os progressistas são contestadores dessa ordem hegemônica neoliberal. Procuram desocultar a ideologia que a sustenta através de uma análise crítica de seus fundamentos e de suas consequências. Denunciam o caráter anti-histórico e, portanto, fatalista do neoliberalismo e o seu cinismo e indiferentismo com relação ao sofrimento humano. Contrapõem à ética do mercado a ética universal do ser humano, que postula a humanização, a luta em favor dos direitos humanos, o que inclui também a luta pela preservação e cuidado do planeta[vi]. A perspectiva progressista é necessariamente democrática, considera a história de maneira não-determinística e por isso vislumbra a chance de um outro mundo possível, mais humano e justo. No plano educacional condiz com essa perspectiva uma educação de caráter crítico-formativo, que não desconhece a imprescindível aprendizagem técnica mas a inscreve como um dos momentos de um processo amplo de formação, que leva em conta a finalidade e a politicidade da educação. Daí Freire pensar uma educação que incorpore o sonho e a utopia – que não é o irrealizável, porém a dialetização dos atos de denúncia da estrutura desumanizadora e anúncio da estrutura humanizante – como dimensões fundamentais nesses tempos de suposta morte das utopias e adequação às exigências do mercado. A pedagogia defendida pelo educador é, pois, uma pedagogia da autonomia e da indignação, e não do treinamento mecânico de determinados comportamentos e da adaptação ao mundo.
            Interessante observar nesse terceiro momento do itinerário do filósofo brasileiro a ênfase dada ao aspecto múltiplo da opressão. Aí se reforça e se explicita ainda mais sua visão dialética da opressão que abarca, como salientamos, as questões econômicas, sociais, étnico-raciais, culturais, de gênero, dentre outras.



[i] Trecho do artigo “Paulo Freire: pedagogo e filósofo” do livro Delmar Cardoso (org.). Pensadores do Século XX. São Paulo: Loyola (no prelo).
[ii] Tese escrita em 1959 para um concurso de professor de História e Filosofia da Educação na Universidade de Pernambuco. Teve na época uma edição pequena e de circulação limitada. Uma nova edição, acrescentada de introduções e contextualizações de especialistas, foi publicada em 2001.
[iii] Exemplo: o homem trabalhador que é oprimido pelo patrão pode, ele mesmo, converter-se no opressor da mulher. O capítulo 1 da Pedagogia do Oprimido apresenta a contradição opressor-oprimido em toda sua dialeticidade.
[iv] Vários autores consideram Freire um dos fundadores da perspectiva de libertação, associando inclusive aos inícios da teologia da libertação. No entanto, nos parece faltar um estudo histórico-filosófico mais amplo e sistemático que percorra os caminhos e os desdobramentos da emergência da consciência libertadora em nosso país e na América Latina. Ensaiamos algo nesse sentido no capítulo 1 de nosso livro Cristianismo libertador: religião e política em Leonardo Boff. São Paulo: Loyola, 2010.
[v] Uma excelente crítica ao neoliberalismo é o livro de David Harvey O Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola, 2008.
[vi] Nas últimas obras percebe-se uma preocupação de Freire com a temática ecológica. Ele inclusive pertencia à comissão internacional de elaboração da Carta da Terra, importante documento que considera as interdependências entre pobreza, degradação ambiental, injustiça sócio-econômica, democracia, ética, espiritualidade e paz. Com sua morte em 1997, Leonardo Boff o substitui na comissão.

Um comentário:

  1. Tenho interesse em participar de encontros, cursos virtuais, fui discente da UFRPE em Letras/Espanhol e Sociologia porém por motivos de saúde abandonei os cursos mas desde 1980 conheço a obra de Paulo Freire, Leonardo Boff, sempre fui uma comunista de carteirinha e no Governo FHC, através do terceiro setor fui professora do Projeto da AED, Casa de Passagem como mulher ensinando jovens abaixo da linha da pobreza tecnologia e questão de gênero. Inspirei-me no modelo de Paulo Freire para ensinar e aprender com o conhecimento dos jovens sobre sua realidade. O nome do Programa era Jovens para o futuro. Recife é a capital com maior índice de feminicidio no Brasil, a renda per capitã era meio salário mínimo por família, não tenho formação acadêmica como professora mas minha vida , minha história se misturou com aqueles jovens, hoje adultos e veio gente de fora ver uma mulher de unha pintada, vestido com uma chave de fenda consertando computador. Devem saber que existem países com redes, nas quais jovens gays, vi são banidos das escolas, esqueci o país mas é na América Central. O tema educação sempre me interessou.

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